Inquérito revela como organizações criminosas manipularam ações judiciais para desviar milhões com a fachada de “defesa dos vulneráveis”
A 2ª Promotoria de Justiça de Sidrolândia, cidade localizada a 70 km de Campo Grande, instaurou um inquérito civil para apurar a responsabilidade de advogados em um esquema que vem sendo tratado como um dos mais escandalosos episódios de “advocacia predatória” já registrados em Mato Grosso do Sul. A investigação expõe uma teia de fraudes jurídicas envolvendo idosos, analfabetos e até pessoas já falecidas, usadas como fachada para processar instituições financeiras e embolsar valores milionários.
A ofensiva é consequência direta da Operação Arnaque, deflagrada em julho de 2023 pelo Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado), que revelou um suposto cartel de advogados e laranjas especializados em fraudar empréstimos e ações judiciais sem o consentimento dos beneficiários. Segundo as investigações, as vítimas sequer sabiam que estavam sendo representadas judicialmente — e, nos raros casos em que os processos eram vitoriosos, os valores nunca chegavam às mãos dos idosos.
Assinaturas forjadas e ações em série
A trama foi revelada após uma instituição financeira de grande porte identificar um volume anormal de ações judiciais com padrões semelhantes e suspeitas de irregularidades. Relatórios internos mostraram que milhares de ações foram propostas com base em procurações obtidas de maneira irregular — e, em muitos casos, inexistentes. Uma perícia chegou a identificar que a assinatura de uma das supostas autoras das ações era radicalmente diferente de sua rubrica habitual, levantando o alerta sobre falsificações em massa.
Diante disso, o caso foi inicialmente analisado pela 3ª Promotoria de Justiça de Sidrolândia, que determinou abertura de inquérito criminal na Polícia Civil. Em seguida, por envolver vítimas idosas, os documentos foram repassados à 2ª Promotoria, responsável pela proteção de pessoas em situação de vulnerabilidade, que agora conduz a apuração civil.
Crime orquestrado e lucro milionário
Segundo os promotores, há fortes indícios de que os fatos estejam ligados a uma organização criminosa estruturada, baseada em Iguatemi (MS), e comandada por advogados com atuação em ao menos 10 estados brasileiros. Os integrantes usavam procurações falsas para ajuizar processos contra bancos e outras instituições, com pedidos de revisão ou cancelamento de contratos de crédito consignado.
A quadrilha movimentou mais de R$ 190 milhões em menos de cinco anos, segundo dados obtidos pela investigação. Os lucros eram lavados por meio de contas de laranjas, empresas fantasmas e movimentações fracionadas, dificultando o rastreamento dos valores.
Exploração da pobreza como instrumento de enriquecimento
O ponto mais estarrecedor revelado pelas investigações é a forma como a miséria e o analfabetismo foram explorados. Os advogados envolvidos atuavam principalmente em regiões carentes, onde captavam documentos de idosos com promessas de “ajuda jurídica gratuita”. Muitos dos alvos mal sabiam escrever, tampouco compreendiam o conteúdo dos papéis assinados — e, em diversos casos, sequer estavam vivos no momento da ação.
Essas práticas escancaram uma nova face da criminalidade de colarinho branco, que instrumentaliza a Justiça para se apropriar de recursos públicos ou privados, sob o pretexto de defender os direitos dos mais frágeis.
MP mira responsabilização civil e punição exemplar
Com a instauração do inquérito civil, o Ministério Público de Mato Grosso do Sul agora trabalha para identificar e responsabilizar os envolvidos pela cadeia de fraudes. Além de eventuais ações judiciais de ressarcimento e sanções administrativas, o MP também cogita comunicar a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) sobre as infrações ético-disciplinares, o que pode levar à cassação de registros e expulsão dos quadros da advocacia.
O promotor responsável afirmou que “o objetivo é duplo: punir exemplarmente quem se valeu da vulnerabilidade de idosos para enriquecer ilicitamente, e garantir a reparação dos danos causados às vítimas”.
Enquanto os processos judiciais continuam em sigilo, uma certeza já se estabelece: o caso escancara uma ferida aberta na advocacia brasileira — e expõe a urgente necessidade de mais fiscalização sobre o uso indevido do sistema de Justiça por grupos que fazem do crime uma profissão de fé.